O professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA-USP, Eliseu Martins, que também é consultor, palestrante, parecerista e autor de vários livros, best-sellers, voltados ao aperfeiçoamento da Contabilidade tanto no mercado de trabalho quanto no setor acadêmico, faz uma exclusiva análise da evolução da Contabilidade no Brasil nestes 70 anos de regulamentação da profissão.

Com uma visão pluralista das questões contábeis, tributárias e econômicas brasileiras, acumulada ao logo de quase cinco décadas de atuação no mercado e no setor acadêmico, inclusive como diretor da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, Eliseu Martins diz, em entrevista à Revista Dedução que a Contabilidade é também a maior das fontes de informação para investidores e credores. Quanto ao Exame de Suficiência da classe, defende que ele é um círculo virtuoso: bom para professores, alunos, instituições de ensino e para o mercado. As International Financial Reporting Standards – IFRS, as International Public Sector Accounting Standards – Ipsas e a Lei de Responsabilidade Fiscal também merecem análise do professor que diz que “a LRF foi um dos maiores avanços, se não o maior que viu no campo da administração pública no Brasil”.

Leia a entrevista na íntegra.

O que representa a Contabilidade para o desenvolvimento socioeconômico do País?

A Contabilidade é um dos melhores, se não o mais completo, dos instrumentos para controle de qualquer patrimônio que se queira ver crescer com segurança. Ela em si não contém todos os controles necessários, mas é a mais importante das fontes. E é também a mais importante das fontes de informações de qualquer empreendimento comercial para o processo decisório. E isso quando olhamos o que ela produz de informação para os usuários internos à empresa, os gestores. Sem falar que ela é também a maior das fontes de informação também para investidores e para credores. Quanto maior a entidade, mais dependência da Contabilidade para todos os stakeholders. E isso inclui, ainda, os sindicatos dos empregados, o governo e outros usuários.

Nestas sete décadas, quais foram os mais relevantes marcos da Contabilidade no Brasil?

A primeira e maior revolução na Contabilidade brasileira foi no ensino. Começou quase no meio da década de 60 na Universidade de São Paulo – USP, quando se iniciou a ensinar a Contabilidade no modelo saxônico, como instrumento de gestão, e não como braço do Imposto de Renda dentro da empresa. Foram os grandes responsáveis: professor Alkindar de Toledo Ramos, inicialmente, e o grande e fenomenal implementador professor Sérgio de Iudicibus. Em 1976, a outra grande revolução foi a legislativa, com a introdução da Lei das S/As e sua Contabilidade também de natureza saxônica, fugindo da europeia cujo modelo se esgotara. E a última revolução, basicamente entre 2008 e 2010, com a implantação das Normas Internacionais de Contabilidade no Brasil. Esses foram, em minha opinião, os maiores marcos da Contabilidade brasileira. Só faltaria talvez falar em outro, mas muito específico por ser válido na alta inflação: a correção monetária integral, instituída em 1987, com o modelo mais desenvolvido já visto até hoje no mundo para manter a capacidade informativa da Contabilidade qualquer que seja o nível inflacionário.

A obrigatoriedade do Exame de Suficiência garantirá a excelência dos serviços contábeis?

Não posso ter absoluta certeza de que esse exame garantirá a excelência dos serviços contábeis, mas sem ele com certeza nunca chegaremos lá. O Exame de Suficiência, levado bem a sério, é parte do círculo virtuoso: o professor quer alunos bons para vê-los aprovados, a escola quer professores e alunos bons para ver seu nome elevado, os alunos querem professores bons para poder adentrar na profissão e assim por diante. Já vemos isso mais claramente nos cursos de Direito com o exame da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Mas falta ainda outro braço importantíssimo, que se iniciou modestamente há pouco tempo e espero o crescimento no futuro: a educação continuada, com todos os profissionais sendo obrigados a se atualizarem continuamente. Hoje praticamente isso atinge apenas auditores independentes e contadores de companhias abertas, mas isso precisa se alastrar e alcançar todos os níveis de profissionais da área. Exame continuado para todos, inclusive nós, professores!

O que a implantação das IFRS representou para a evolução da Contabilidade no mundo dos negócios?

É uma enorme revolução, pena que ainda não conseguindo efetivamente ser implementada em todos os níveis da prática contábil brasileira. Por enquanto, somente as grandes empresas e algumas empresas médias, de fato, vêm aplicando seriamente as IFRS. Mas, aonde ela chegou, a mudança na qualidade da informação e a melhoria da imagem do próprio contador é muito forte, visivelmente forte. Talvez seja mesmo esse o caminho: parece que as micro e pequenas empresas não precisam mesmo das IFRS, a Contabilidade que já praticávamos para elas, antes, levada a sério, seria mais do que suficiente. Só que é insuficiente para as empresas que crescem, se sofisticam e começam a praticar operações que precisam ficar melhor representadas nas demonstrações contábeis. Mas os profissionais de todos os níveis precisariam se enfronhar mais, conhecer melhor essas IFRS, inclusive os das pequenas empresas para poderem também se preparar para trabalhar nas empresas maiores. De qualquer forma, que passo enorme e quantos profissionais descobrindo novos campos (e novas remunerações) quando dominam essas normas novas!

Os usuários da Contabilidade, setor público e privado, têm se beneficiado da evolução desta ciência? Em que sentido?

Os usuários internos das corporações maiores com certeza têm se beneficiado enormemente. E rapidamente estão percebendo que essas informações os ajudam muito mais a controlar, a avaliar, julgar e decidir. Os usuários externos ainda carecem de melhor preparação para delas se aproveitar. Infelizmente é perceptível que muitos desses usuários ainda não aprenderam a dominar o arsenal que lhes é colocado à disposição. Já na área pública parece que ainda temos um caminho enorme a percorrer.

E quanto às IPSAS, quais as principais dificuldades para sua implementação, considerando que o Brasil é um País campeão em burocracia?

As maiores dificuldades, para mim, estão centradas na necessidade de preparação, primeiramente, dos profissionais dessa área que sofreram todo um treinamento ao longo das décadas que muito pouco tem a ver com o que deles se espera com as normas internacionais para a área pública. Nas tradições brasileiras, nessa área faltam cuidados com determinados conceitos tipo competência, depreciações e amortizações, atualização monetária e outras. Tal fato levou à falta de preocupação em procurar ensinar os gestores públicos sobre a utilidade das informações contábeis. Essa mudança de mentalidade é um assunto a ser atacado e modificado com um pouco mais de força.

A Lei de Responsabilidade Fiscal completou, no dia 4 de maio, 16 anos de vigência. Neste período, como você avalia o cenário político e econômico?

Essa lei, apesar de atacada muitas vezes, foi um dos maiores avanços, se não o maior que vi no campo da administração pública no Brasil. Alguns ataques continuam sendo feitos e tentativas continuam a aparecer para relaxá-la. Unam-nos contra isso. E, muitas vezes, as grandes tentativas de burla têm-se feito presentes exatamente em cima do contador, procurando forçá-lo a classificar esse gasto desta ou daquela forma mais “conveniente”. Aqui, a mesma responsabilidade que se cobra do contador profissional precisa ser cobrada na área pública. Deveríamos nos orgulhar de termos um papel tão importante nesse controle do dinheiro de todos nós, povo.

É possível que a Contabilidade Pública venha a se tornar um fator inibidor da corrupção e do mau uso do dinheiro público?

Gostei da expressão “fator inibidor”. Malversação do dinheiro público, infelizmente talvez nunca acabe. Mas o importante é que os contadores têm, de fato, enorme papel para reduzir esse mal que nos deixa envergonhados hoje. Talvez, nesse campo, não seja desse profissional a maior responsabilidade, já que os grandes problemas ocorrem nas decisões sobre valores a pagar por certos bens e serviços adquiridos, e isso está fora do controle do contador. Mas se ele tiver maior autonomia poderá, sim, auxiliar, e muito nesse campo. E aí cabe outra indagação forte: e os contadores das empresas privadas que se beneficiam da corrupção, não têm, talvez, condições de ajudar mais ainda na inibição desse terrível mal?

Como você vê o futuro da Contabilidade no País?

Com uma oportunidade ainda por crescer muito. Primeiramente, temos, num País de generalizada informalidade nas empresas menores, um campo enorme. A informalidade, a sonegação, o não registro integral das receitas e despesas são o maior mal para o contador. Isso tira de suas demonstrações a validade e a utilidade que poderiam ter. Nesse campo temos muito a aprender: trabalhando fortemente pela formalização das atividades das empresas teremos muito mais condição de fazer com que a Contabilidade se transforme em instrumento efetivamente útil para a sua gestão. E, no caso das médias e grandes empresas, temos ainda muito a aprender com o estudo e a análise de quais informações poderíamos adicionar às que já produzimos para aumentar a qualidade da gestão e das decisões, no caso dos usuários externos, de financiamento e investimento. Ou seja, o futuro é ainda muito rico e promissor para a nossa profissão.

E as pequenas empresas, estas estão inseridas na Contabilidade?

A maioria dos empresários menores no Brasil nunca foi treinada a utilizar informações contábeis para sua gestão. Acostumaram-se a ver os profissionais de Contabilidade como empregados ou fornecedores externos de serviços, espécie de pessoas a serviço do governo. Essa imagem precisa ser mudada. E não adianta querer ficar esperando que os empresários mudem sozinhos de pensamento. Precisamos nós [contadores] ensinar-lhes a utilidade das informações contábeis, de um sistema de gerenciamento de recursos financeiros, de custos, de acompanhamento das taxas de rentabilidade dos vários segmentos da empresa. Se não formos nós a lhes ensinar, quem vai fazê-lo? Assim, precisamos tornarmo-nos os maiores vendedores dos serviços de Contabilidade. Para isso precisamos, às vezes, até estudar e aprender mais do que sabemos, mas o importante é vermos o seguinte: do que adianta um balancete cheio de débitos e créditos ou ativos somados com despesas na mão de um empresário? Isso é loucura. Aprendamos a preparar balanço, resultado e fluxo de caixa de forma simples, linguagem acessível e formato amigável. Do que adianta terminar em maio o balanço do ano passado? O mundo já virou do avesso. Aprendamos a conhecer quais são as informações que de fato são úteis para esses gestores, o período que precisam, a regularidade, o nível de detalhe etc. Nós é que temos que correr atrás dos nossos “clientes” e ensinar-lhes sobre os produtos que temos em mão. Isso poderá fazer muita diferença nos nossos bolsos no fim do mês também, é claro.

Fonte: Revista Dedução, Por Lenilde De León

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